30 de julho de 2016

A expessão "7 a 1" foi a melhor coisa que alguém poderia nos deixar

"mãe, e seu eu voltasse a escrever?"
"tenta, vai que te faz bem."

Então eu quis escrever, eu quis falar. Não sei por quanto tempo, não sei se alguém vai ver. Mas sabe como é, muita coisa já mudou desde 2009 (quando comecei a escrever), mas a vontade de falar não.

Enquanto atravesso a Ponte, me lembro de terem parado o teleferico ontem. Mando mensagem pro grupo da equipe no wpp. Pergunto como estão as coisas e me dizem que embora esteja perigoso no territorio, está tranquilo no entorno da unidade.
Da saída da linha amarela até a clinica sinto o clima estranho. O teleférico está parado. As pessoas nos pontos de onibus estão mais impacientes que nos outros dias. As pessoas andam mais rapido nas ruas. Tá...estranho.
Desço do onibus e vou até a clinica olhando para todos os lados. Penso onde eu me esconderia se me começasse um tiroteio. Já fiz o mapa dos lugares. A escola publica que esta com o portão aberto, a banca de jornal, a guarita do condominio e a barraca de tapioca. Ando rapido até a clínica.
Chego e encontro os agentes de saúde e a enfermeira preocupados em uma sala. Eles todos olham pra mim e falam "tadinha, ela chegou logo quando a gente tá falando disso", considerando meu historico em me assustar com tudo.
Estavam preocupados que precisavam levar remédio para uma paciente, mas estava tendo tiroteio lá perto. Ela é psiquiatrica e precisava muito do remédio.
Vou atender em outra sala. Atendo um rapaz que está com uma bala alojada nas costas. a bala está ali há cerca de dois anos e o cirurgião que o atendeu naquela epoca lhe disse que um dia seu corpo iria expulsar o projetil. E expulsou.
Vou na outra sala conversar com um dos médicos da unidade sobre outro paciente. Chego lá e a paciente que ele atende fala pra nós "Não tem como eu abaixar a pressão assim, tão apontando fuzil do lado da minha casa, moro em beco(...) Minha filha trabalha num lugar onde estão atirando direto, as paredes tão todas furadas. Ela pode ir trabalhar e não voltar."
Volto pra minha sala e a paciente que eu atendia me fala que tá com medo de voltar pra casa, devido os tiros diários que tem ocorrido. Falo pra ela ligar pra quem está em casa antes de subir.
Chamo o proximo paciente, que me fala que só quer remédio pra dor. Tento explorar sua dor, a historia dela. Ele me conta, mas diz que só quer remédio, porque ele já foi muito iludido. Foi demitido após um acidente de trabalho e foi em várias consultas particulares e fez vários exames pagos, gastou toda sua poupança tentando mostrar a deformidade que o acidente lhe causou e se encostar pelo INSS. Peço pra ele trazer tudo o que tem de exames na proxima semana, que quero ajuda-lo nisso. Ele recusa. diz que já foi muito chateado, ele só quer um remédio pra dor. Me diz que o SUS só funciona pra "quem tem sorte ou então quem conhece alguém lá dentro" Deixo a sala e converso com a melhor equipe de Saúde da Família do mundo (sim, a melhor, e ai que orgulho disso) e decidimos passar um antidepressivo com efeito analgésico e chamo meu  preceptor pra conversar com ele. O paciente finalmente é convencido de que queremos ajudá-lo. Aceita vir na proxima semana com seus exames e documentos, explicamos que ele pode fazer fisioterapia, exames e ter um parecer de especialista pelo SUS, sem pagar nada. Explicamos que ele não tem que pagar nada. Acho que agora ele vai "ter sorte".
Após mais alguns atendimentos, vou almoçar. Na copa da unidade, converso com alguns funcionarios da clinica sobre como a violencia tem me atingido e que desde que passei por um tiroteio, há pouco mais de um mês, não me sinto a mesma.  Uma funcionaria me fala que realmente eu estou diferente. Que eu falo de tudo com medo. Uma agente de saúde do meu lado me disse que ela também já ficou assustada como eu. Me disse que ficou assustada depois que foi atingida por uma bala perdida aos 15 anos, voltando de seu primeiro emprego como Jovem Aprendiz. Ela nos conta muita coisa. Sobre como a mãe dela discutiu com os policiais no hospital que ela era "trabalhadora" enquanto ela recebia o pronto atendimento dos médicos. Em seguida uma funcionaria do administrativo nos conta sobre como ela e o esposo foram assaltados e tiveram o carro levado pelos bandidos, e que tudo o que ela fazia na noite chuvosa era apertar o rosto do filho contra seu peito, para que ele não visse os assaltantes armados.
Após o almoço atendo mais alguns pacientes, e quase todos estão preocupados em voltar pra casa. Atendo um senhor de idade que me conta que não pode fazer exame de sangue dele nem da mulher. Sua esposa é debilitada e os técnicos estão evitando ir até a comunidade colher sangue, devido os tiroteios. Do mesmo modo, ele tem medo de ambos descerem e o tiroteio começar no caminho.
À noite, volto para casa e vejo o teleferico rodando outra vez.
Chego em casa, as 21h, e minha mãe me conta que na rua do trabalho de uma amiga sua um homem foi espancado até a morte as 10 horas da manhã, na frente de todo mundo. Espancado até a morte. E que ela nunca mais ia esquecer do que acabou vendo. Minha mãe me conta que fizeram vários assaltos na rua em que ela trabalha naquele mesmo dia.
Me lembro sobre como todos noticiam que os assaltos a onibus onde minha mãe mora acontecem quase que diariamente.
Ligo a TV e a notícia é clima olimpico. Clima de festa. Que o Rio de Janeiro está feliz.

Mas aqui na periferia o clima não é de Olimpíada, o clima é de Copa. O clima é de 7 a 1 todo dia.



30 de julho de 2016

A expessão "7 a 1" foi a melhor coisa que alguém poderia nos deixar

"mãe, e seu eu voltasse a escrever?"
"tenta, vai que te faz bem."

Então eu quis escrever, eu quis falar. Não sei por quanto tempo, não sei se alguém vai ver. Mas sabe como é, muita coisa já mudou desde 2009 (quando comecei a escrever), mas a vontade de falar não.

Enquanto atravesso a Ponte, me lembro de terem parado o teleferico ontem. Mando mensagem pro grupo da equipe no wpp. Pergunto como estão as coisas e me dizem que embora esteja perigoso no territorio, está tranquilo no entorno da unidade.
Da saída da linha amarela até a clinica sinto o clima estranho. O teleférico está parado. As pessoas nos pontos de onibus estão mais impacientes que nos outros dias. As pessoas andam mais rapido nas ruas. Tá...estranho.
Desço do onibus e vou até a clinica olhando para todos os lados. Penso onde eu me esconderia se me começasse um tiroteio. Já fiz o mapa dos lugares. A escola publica que esta com o portão aberto, a banca de jornal, a guarita do condominio e a barraca de tapioca. Ando rapido até a clínica.
Chego e encontro os agentes de saúde e a enfermeira preocupados em uma sala. Eles todos olham pra mim e falam "tadinha, ela chegou logo quando a gente tá falando disso", considerando meu historico em me assustar com tudo.
Estavam preocupados que precisavam levar remédio para uma paciente, mas estava tendo tiroteio lá perto. Ela é psiquiatrica e precisava muito do remédio.
Vou atender em outra sala. Atendo um rapaz que está com uma bala alojada nas costas. a bala está ali há cerca de dois anos e o cirurgião que o atendeu naquela epoca lhe disse que um dia seu corpo iria expulsar o projetil. E expulsou.
Vou na outra sala conversar com um dos médicos da unidade sobre outro paciente. Chego lá e a paciente que ele atende fala pra nós "Não tem como eu abaixar a pressão assim, tão apontando fuzil do lado da minha casa, moro em beco(...) Minha filha trabalha num lugar onde estão atirando direto, as paredes tão todas furadas. Ela pode ir trabalhar e não voltar."
Volto pra minha sala e a paciente que eu atendia me fala que tá com medo de voltar pra casa, devido os tiros diários que tem ocorrido. Falo pra ela ligar pra quem está em casa antes de subir.
Chamo o proximo paciente, que me fala que só quer remédio pra dor. Tento explorar sua dor, a historia dela. Ele me conta, mas diz que só quer remédio, porque ele já foi muito iludido. Foi demitido após um acidente de trabalho e foi em várias consultas particulares e fez vários exames pagos, gastou toda sua poupança tentando mostrar a deformidade que o acidente lhe causou e se encostar pelo INSS. Peço pra ele trazer tudo o que tem de exames na proxima semana, que quero ajuda-lo nisso. Ele recusa. diz que já foi muito chateado, ele só quer um remédio pra dor. Me diz que o SUS só funciona pra "quem tem sorte ou então quem conhece alguém lá dentro" Deixo a sala e converso com a melhor equipe de Saúde da Família do mundo (sim, a melhor, e ai que orgulho disso) e decidimos passar um antidepressivo com efeito analgésico e chamo meu  preceptor pra conversar com ele. O paciente finalmente é convencido de que queremos ajudá-lo. Aceita vir na proxima semana com seus exames e documentos, explicamos que ele pode fazer fisioterapia, exames e ter um parecer de especialista pelo SUS, sem pagar nada. Explicamos que ele não tem que pagar nada. Acho que agora ele vai "ter sorte".
Após mais alguns atendimentos, vou almoçar. Na copa da unidade, converso com alguns funcionarios da clinica sobre como a violencia tem me atingido e que desde que passei por um tiroteio, há pouco mais de um mês, não me sinto a mesma.  Uma funcionaria me fala que realmente eu estou diferente. Que eu falo de tudo com medo. Uma agente de saúde do meu lado me disse que ela também já ficou assustada como eu. Me disse que ficou assustada depois que foi atingida por uma bala perdida aos 15 anos, voltando de seu primeiro emprego como Jovem Aprendiz. Ela nos conta muita coisa. Sobre como a mãe dela discutiu com os policiais no hospital que ela era "trabalhadora" enquanto ela recebia o pronto atendimento dos médicos. Em seguida uma funcionaria do administrativo nos conta sobre como ela e o esposo foram assaltados e tiveram o carro levado pelos bandidos, e que tudo o que ela fazia na noite chuvosa era apertar o rosto do filho contra seu peito, para que ele não visse os assaltantes armados.
Após o almoço atendo mais alguns pacientes, e quase todos estão preocupados em voltar pra casa. Atendo um senhor de idade que me conta que não pode fazer exame de sangue dele nem da mulher. Sua esposa é debilitada e os técnicos estão evitando ir até a comunidade colher sangue, devido os tiroteios. Do mesmo modo, ele tem medo de ambos descerem e o tiroteio começar no caminho.
À noite, volto para casa e vejo o teleferico rodando outra vez.
Chego em casa, as 21h, e minha mãe me conta que na rua do trabalho de uma amiga sua um homem foi espancado até a morte as 10 horas da manhã, na frente de todo mundo. Espancado até a morte. E que ela nunca mais ia esquecer do que acabou vendo. Minha mãe me conta que fizeram vários assaltos na rua em que ela trabalha naquele mesmo dia.
Me lembro sobre como todos noticiam que os assaltos a onibus onde minha mãe mora acontecem quase que diariamente.
Ligo a TV e a notícia é clima olimpico. Clima de festa. Que o Rio de Janeiro está feliz.

Mas aqui na periferia o clima não é de Olimpíada, o clima é de Copa. O clima é de 7 a 1 todo dia.